Cris Sabiá: o gesto que rompe o silêncio

Domitila Vittoria

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A pintura de Cris Sabiá não se oferece como resposta. Ela é pergunta, ruído, rasura. Sua obra não busca a harmonia — ela escava. Em cada gesto, há um esforço de dizer o indizível, de dar forma ao que foi historicamente calado: o corpo neurodivergente, a mulher negra, a artista lésbica, a subjetividade não domesticada.

A artista não pinta para agradar. Pinta porque precisa. E essa urgência se traduz em superfícies que oscilam entre o figurativo e o abstrato, entre o grito e o sussurro. As cores não são decorativas — são afirmações. Os corpos que emergem de suas telas não são idealizados — são atravessados, fragmentados, intensos. Há algo de cru, de inacabado, de profundamente verdadeiro em sua pintura.

A série FALA é um ponto de condensação dessa poética. As obras não se organizam como uma narrativa linear, mas como campos de tensão. Não se trata de representar o autismo ou explicar a dor. Trata-se de fazer ver — e, sobretudo, de fazer sentir. O que está em jogo não é a tradução de uma experiência, mas a sua presença. E essa presença, no caso de Cris, é política.

Sua pintura carrega o peso de uma escuta que nunca lhe foi oferecida. E ao ocupar o espaço com suas imagens, ela devolve ao mundo aquilo que o mundo tentou apagar: sua existência plena, complexa, indomável. A artista não ilustra sua condição — ela a reinventa. E ao fazer isso, desafia os regimes de visibilidade que moldam o olhar social sobre o corpo neurodivergente e racializado.

Há uma dimensão ética em sua prática que não se reduz à temática. Ela está no modo como Cris se recusa a simplificar. Suas obras não cabem em categorias fáceis. Elas incomodam, deslocam, exigem. E é justamente aí que reside sua potência: na recusa da adaptação, na afirmação da diferença como força criadora.

Ao lado de artistas como Rosana Paulino, Berna Reale e Judith Scott, Cris Sabiá constrói uma poética que não separa arte e vida, estética e política, forma e experiência. Mas sua voz é singular. Sua pintura não quer explicar — quer existir. E, ao existir, convoca outras existências a se afirmarem também.

Em tempos de discursos higienizados e representações domesticadas, a obra de Cris Sabiá é um corpo que pulsa, que insiste, que perturba. Sua arte não oferece alívio. Ela oferece presença. E isso, hoje, é profundamente radical.

Domitila Vittoria é curadora, produtora cultural e artista visual.
Cria exposições e projetos que conectam arte, saúde mental e empoderamento feminino, com foco em narrativas sensíveis e práticas colaborativas